MAIORIDADE PENAL - Na prática, redução já existe e não dá certo
Eu sempre disse ser contra a maioridade penal e tenho vários motivos para isso.
Ao passo que vamos na atualidade, se formos diminuir a maioridade penal a um patamar que puna todos os menores infratores, daqui a pouco chegaremos à punição na infância, pois já há casos de menores de oito anos matando ou cometendo outros delitos por aí.
O que precisamos é de uma política que puna realmente todo infrator da lei, seja menor ou adulto, sem benefícios após preso. O que precisamos é de um sistema carcerário que (re)humanize o detento e que faça ele voltar a querer ser inserido na sociedade como verdadeiro cidadão. O que precisamos é de um sistema que realmente (re) eduque nossos menores no caso de serem detidos, com respeito à dignidade humana e obedecendo os preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente. E que acima de tudo, faça com que os menores não queiram voltar à vida delituosa, por saberem que terão de continuar pagando por seus delitos após atingirem a maioridade, com a conversão de um ato infracional em crime para o cumprimento total das penas previstas.
Pois hoje, na verdade, já há maioridade penal nas casas de recuperação de menores espalhadas pelo país. Senão, vejamos a entrevista a seguir:
A entrevista
a seguir foi feita no meio de 2014. Na ocasião, o pesquisador Fábio Mallart, que viveu de perto a rotina da Fundação Casa, acabava de
lançar seu livro, “Cadeias
Dominadas –A Fundação Casa, suas Dinâmicas e as Trajetórias de Jovens Internos” (264 pp,
Editora Terceiro Nome). Na obra, Mallart, constata que a Fundação Casa já se transformou em cadeia, onde menos do que educar e sociabilizar, como era previsto pelo Estatuto da Criança e
Adolescência, o que acontece é a mera rotina de
punição e segregação do jovem em conflito com a lei. Funciona com a mesma
lógica punitiva e carcerária dos estabelecimentos voltados para adultos.
Mestre em
Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e membro do Núcleo de Etnografias Urbanas
do Cebrap, Mallart conviveu com jovens
infratores nas unidades daFundação
Casa (antiga Febem) entre 2004 e 2009. Durante esses anos, ministrou oficinas de
fotografia aos adolescentes dos complexos do Brás, Franco da Rocha, Tatuapé, Vila Maria e Raposo Tavares, em São Paulo. Foi a forma que encontrou para se aproximar dos jovens,
conhecer-lhes o cotidiano, suas formas de organização e de resistência.
O paralelismo entre as cadeias de
adultos e a Fundação Casa é total. Até a superlotação típica dos presídios
agora acontece nas unidades da fundação, segundo denúncia protocolada pelo Ministério Público Estadual. “A situação, de séria gravidade, configura flagrante desrespeito aos
direitos humanos dos adolescentes”, diz o texto da ação.
Na entrevista, Mallart mostra como o
Estado “alinhou” a Fundação Casa com os métodos usados nas prisões. E mostra
também como os jovens “alinharam-se” com a organização criminosa Primeiro Comando da Capital.
O fracasso atual dessa estratégia penitenciária no combate à violência mostra que a redução da maioridade penal, em vez
de corrigir os problemas que o pesquisador aponta, apenas conseguirá aprofundar
o drama vivido por tantas famílias e jovens a que o Estado vem negando um
futuro.
Como disse Mallart,
“O problema
é que parece claro hoje em dia que o modelo prisional vigente está falido
–tanto em relação aos adultos quanto aos jovens. Vários pesquisadores têm
apontado que, quanto mais você encarcera, mais você fortalece a criminalidade,
em vez de combatê-la. Hoje está claro que a expansão do PCC dentro e fora das
prisões está estritamente relacionada a um encarceramento em massa que o Estado
pôs em prática há alguns anos. Porque você vai jogando cada vez mais gente para
dentro, para dentro, para dentro e isso só tem fortalecido a organização. De
certa forma, eu acho que existe um reflexo dessa política de encarceramento em
massa também na Fundação Casa. Há, inclusive, um texto da própria Berenice em
que ela diz ter a sensação de que, se fossem construídas 50 novas unidades,
essas 50 novas unidades estariam repletas em pouco tempo. Então é um reflexo da
própria política governamental que vai jogando cada vez mais adolescentes para
dentro do sistema, e isso não combate o crime, mas, pelo contrário, fortalece o
crime.”
Abaixo, a entrevista:
Laura
Capriglione — Em seu livro, você defende a ideia de que o sistema socioeducativo de
internação
progressivamente se alinhou à lógica do sistema penitenciário. Como isso
aconteceu? Quais os sintomas desse deslocamento?
Fábio
Mallart — Esse
alinhamento pode ser flagrado de maneira mais clara a partir de meados da
década de 2000, com a nomeação, pelo governador Geraldo Alckmin, da procuradora
do Estado Berenice Maria Giannella como presidente da Febem (Fundação Estadual
do Bem-Estar do Menor), depois rebatizada Fundação Centro de Atendimento
Socioeducativo ao Adolescente (Casa). Berenice foi corregedora-geral do Sistema
Penitenciário do Estado de São Paulo e ocupava a função de secretária-adjunta
da SAP (Secretaria de Administração Penitenciária). Essa nomeação marca o
ingresso de vários funcionários do sistema carcerário na Febem, assumindo a
direção de algumas unidades de internação. Além disso, nesse mesmo período da
década de 2000, você tem uma série de transferências de adolescentes da Febem
para presídios localizados no interior de São Paulo. Transferências que foram,
diga-se, autorizadas pelo governador Geraldo Alckmin.
Laura
Capriglione — Isso aconteceu antes dos ataques do PCC?
Fábio
Mallart — Sim, antes.
É quando começam as transferências de adolescentes infratores para presídios.
No meio de 2006, quando eu trabalhei no complexo da Vila Maria, uma das
unidades operava de forma muito semelhante ao “Regime Disciplinar
Diferenciado”, o RDD, vigente em algumas unidades do sistema adulto. Era assim
que os adolescentes chegavam a ficar 23, às vezes 24 horas, trancados no
quarto, sem atividades, como parte de uma lógica evidentemente punitiva e
carcerária. Em algumas unidades da Fundação Casa, você tem também, em meados da
década de 2000, a introdução do GIR (Grupo de Intervenções Rápidas), que vem da
SAP, e começa a ser deslocado para algumas unidades para controlar a dinâmica
de funcionamento desses espaços.
Laura
Capriglione — E os internos, diante dessa mudança?
Fábio
Mallart — Como nos presídios paulistas, você tem
posições políticas entre os adolescentes, que se dividem em estruturas
hierárquicas conhecidas nas prisões de adultos. Foi
assim que apareceram nas unidades de internação figuras como o piloto, o
faxineiro… esses setores todos. Os adolescentes das unidades de internação
dominadas procuram seguir as orientações que são transmitidas pelos integrantes
do Primeiro Comando da Capital, e aí são orientações que, em geral, vem tanto
de penitenciárias quanto de regiões periféricas. Então, o quadro atual da
Fundação Casa deve ser visto nesse entrecruzamento. Você tem uma política
oficial marcada pela lógica carcerária e tem também os adolescentes orientando
suas ações de acordo com as orientações do Primeiro Comando da Capital.
Laura
Capriglione — O que veio primeiro, a lógica do PCC entrando nas cadeias ou veio
primeiro a lógica institucional das penitenciárias entrando na Fundação Casa?
Fábio
Mallart — É difícil saber o que veio primeiro.
São duas coisas muito entrelaçadas. Reconstituindo algumas trajetórias de
internos pude ver que muitos adolescentes já entram na Fundação Casa sabendo as
normas de conduta do PCC. Então, se o adolescente
trabalhava em um ponto de venda de drogas, ele já entra sabendo como opera
dentro do Comando. Porque, naquela biqueira, ele já orientava suas ações de
acordo com os preceitos do PCC. A lógica, portanto, vem de fora. Não se
constitui dentro da Fundação Casa. Ao mesmo tempo, as políticas governamentais
são uma espécie de espelho dessas políticas que estão no sistema prisional
adulto. O que eu acho interessante notar é que, hoje em dia, mais do que nunca,
a fronteira entre o “dentro” e o “fora” dessas instituições é porosa. Os muros
são porosos. Não existe mais aquela prisão totalmente fechada, sem relações com
o mundo exterior. Pelo contrário, o que se vê são os princípios do PCC
atravessando esses muros institucionais, e esses adolescentes tentando
sintonizar as ações deles, do cotidiano, com o cotidiano prisional e das
periferias urbanas, também.
Laura
Capriglione — E o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)? Como fica, diante da
transformação das medidas socioeducativas em prisão?
Fábio
Mallart — O ECA, que
resultou do processo de transição democrática, decidiu pela separação entre
adolescentes abandonados e adolescentes infratores. Para os adolescentes
abandonados, a partir de então, se estabeleceu que eles deveriam receber
medidas de proteção. Para os adolescentes infratores, se estabeleceu que eles
deveriam receber medidas socioeducativas. Para mim, de certa forma, há um
paradoxo. Pois, olhando em retrospecto, é claríssimo que, ao dividir
abandonados e infratores, o ECA, em conjunto com outras dinâmicas, acionou o
caráter punitivo e carcerário das chamadas “medidas socioeducativas”. Ao dizer
que “esses abandonados merecem medidas de proteção, e os infratores merecem
medidas socioeducativas”, o ECA acabou fazendo com que as medidas
socioeducativas se aproximassem, cada vez mais, de uma lógica punitiva. Não é à
toa que as unidades de internação são chamadas, tanto por adolescentes quanto
por funcionários, de “cadeias”. Acho que é um termo que, por si só, evidencia duas
coisas. Primeiro, há uma lógica punitiva carcerária operando nesses lugares.
Segundo, você tem uma simetria entre as unidades de internação e as unidades do
sistema prisional.
Laura
Capriglione — Se você tem esses jovens sendo cooptados pelo crime tão cedo, nas biqueiras, começando
precocemente a dominar esse repertório cultural do crime, não é meio natural,
digamos assim, não é meio uma resposta lógica que o Estado responda com uma
política de encarceramento que faz da Febem/Fundação Casa espelho das penitenciárias?
Teria como ser diferente isso?
Fábio
Mallart — O problema é
que parece claro hoje em dia que o modelo prisional vigente está falido –tanto
em relação aos adultos quanto aos jovens. Vários pesquisadores têm apontado
que, quanto mais você encarcera, mais você fortalece a criminalidade, em vez de
combatê-la. Hoje está claro que a expansão do PCC dentro e fora das prisões
está estritamente relacionada a um encarceramento em massa que o Estado pôs em
prática há alguns anos. Porque você vai jogando cada vez mais gente para
dentro, para dentro, para dentro e isso só tem fortalecido a organização. De
certa forma, eu acho que existe um reflexo dessa política de encarceramento em
massa também na Fundação Casa. Há, inclusive, um texto da própria Berenice em
que ela diz ter a sensação de que, se fossem construídas 50 novas unidades,
essas 50 novas unidades estariam repletas em pouco tempo. Então é um reflexo da
própria política governamental que vai jogando cada vez mais adolescentes para
dentro do sistema, e isso não combate o crime, mas, pelo contrário, fortalece o
crime.
Laura
Capriglione — Desde a nomeação de Berenice Gianella, há um estado de relativa calmaria
nas unidades da Fundação Casa. Um motim, aqui e ali, mas nada daquelas
mega-rebeliões que aconteciam todo o
tempo nas Febems… Como se conseguiu isso?
Fábio
Mallart — Eu tive a oportunidade de estar dentro
da Fundação Casa em vários momentos a partir de 2006. O que aconteceu dentro da
fundação foi o mesmo que aconteceu nos presídios e, em alguma medida, nas periferias urbanas, que é a bandeira branca. Os adolescentes
receberam indicações de que, a partir daquele momento, as agressões entre eles
ou qualquer tipo de rebelião deveriam ser evitadas. Trata-se de um período de
paz nas cadeias paulistas, que inclui a Fundação Casa. Do ponto de vista de
quem está “tirando” uma cadeia, como dizem os próprios internos, o cenário é
muito mais favorável, porque os funcionários não oprimem tanto. Também houve
uma sensível redução dos índices de violência entre eles. Não é que hoje não
existam mais espancamentos entre adolescentes e de funcionários contra
adolescentes. Eles ainda existem. Só que a intensidade e a frequência são
menores. E hoje se veem cenas que seriam inimagináveis na década de 80, como
adolescentes impossibilitarem a entrada de funcionários no pátio. Entrevistei
um ex-interno da Febem, que passou 15 anos dentro do sistema a partir do início
dos anos 70, e que ficou espantado com o que viu na Fundação Casa ao voltar
para fazer um trabalho social. “O que é isso? Os adolescentes agora fazem a
gestão da cadeia, são eles que entregam alimentação, são eles que organizam as
atividades esportivas, os campeonatos de futebol”, relatou-me…
Laura
Capriglione — Os jornais costumam dizer que existe nas cadeias um acordo entre o PCC e a direção do
sistema prisional em São Paulo. Você tem alguma pista de que isso tenha se
desdobrado também na Fundação Casa?
Fábio
Mallart — Dentro das unidades de internação isso
ficou muito claro. Naquelas cadeias chamadas de “dominadas”, presentes nos grandes complexos da instituição (Raposo Tavares,
Franco da Rocha, Vila Maria, e, na época, o Tatuapé também), quem faz a gestão
do espaço institucional são os próprios adolescentes. São os chamados
disciplinas, que são jovens reconhecidos como líderes tanto por funcionários
quanto por adolescentes, que se dividem em uma série de posições: piloto,
faxina, encarregado e setor. E os adolescentes que ocupam essas posições
políticas são responsáveis por gerir o espaço institucional, desde a entrega da
alimentação até a organização dos campeonatos de futebol, dos torneios de
dominó, mas também de relações e negociações com o diretor da unidade. Que
essas negociações e esses acordos são frequentes, não me resta nenhuma dúvida,
isso não só na Fundação Casa, mas em alguma medida nos presídios, nas
periferias.
Laura
Capriglione — Em que medida tais acordos são respeitados?
Fábio
Mallart — É
interessante perceber que esses acordos são frágeis, instáveis. São acordos que
podem terminar a qualquer momento, e aí acho que a gente consegue entender a
eclosão de episódios de terrível violência, como naquela onda de mortes em
2012, quando houve uma matança geral. Policiais e facção criminosa em guerra.
Na Fundação Casa, pude presenciar várias situações em que os pilotos saíam das
unidades de internação e iam negociar aquilo que eles chamavam de “benefícios”,
junto ao coordenador da unidade. Ou, por exemplo, saíam para fazer reclamação
de que as visitas estavam sofrendo muito esculacho para entrar na cadeia.
Laura
Capriglione — Quando você fala “saíam”, é sair mesmo?
Fábio
Mallart — Saíam e iam para a sala do diretor.
Depois, voltavam.
Laura
Capriglione — Todas as cadeias são assim?
Fábio
Mallart — Não. O que
eu flagrei na pesquisa foi a existência de três tipos de cadeias.
Primeiramente, existem as “cadeias dominadas”, que são essas em que os
adolescentes são responsáveis pela gestão do espaço institucional. Depois, vem
as cadeias na mão dos “funças”, unidades em que os funcionários detêm o
controle, onde impera a lógica do “licença, senhor”, “licença, senhora”, cabeça
baixa, mão para trás. Por fim, há as cadeias “meio-a-meio”, em que vigora um
equilíbrio das forças, em que algumas tarefas são compartilhadas, onde tem uma
tensão muito maior, porque o que está em disputa é justamente a unidade. É
preciso não generalizar, nem achar que todas as cadeias da Fundação Casa são
cadeias dominadas. Depende da conjuntura.
Laura
Capriglione — Como comparar esses modelos de gestão em termos de índice de violência?
Fábio
Mallart — Dentro de uma cadeia dominada, o grau
de violência entre adolescentes e funcionários é reduzido, se comparado a uma
cadeia da mão dos “funça”, onde a disciplina é aquela da “mão para trás, cabeça baixa”. Eu não estou me referindo só à agressão física, mas a
violências como por exemplo, essas, que obrigam os internos a ficar o dia
inteiro sentados no chão, a fazer fila para ir ao banheiro, a não poder ficar
dois minutos embaixo do chuveiro tomando banho, a ser revistado várias vezes ao
dia. Eu sempre tomo cuidado para não passar a impressão de que nas cadeias
dominadas tudo é uma maravilha. Não, também existem violências e tensões ali
dentro. Um exemplo: se um adolescente se masturba no dia de visita, em uma
cadeia dominada…
Laura
Capriglione — Morre?
Fábio
Mallart — Não. Desde
que se instaurou a bandeira branca, o que eles costumam fazer é colocar o
adolescente para fora da unidade, mandar para o “seguro”. Antes da bandeira
branca, era comum a “madeirada”, em que se aplicava um corretivo físico em quem
porventura fizesse isso, porque sabia que não podia fazer… Masturbar-se em dia
de visita, enfim, é orientação que não pode ser descumprida.
Laura
Capriglione — Dá para dizer que os valentões cederam a liderança das cadeias aos negociadores?
Fábio
Mallart — O que eu pude perceber é que isso é um
deslocamento no universo do crime, mesmo. Se na década de 90, na época do
Carandiru, os ladrões respeitados eram os caras que tinham disposição para matar, o que pude notar é que existe hoje em dia uma predisposição ao
diálogo. A tentar resolver as fitas na ideia. Isso significa que não haja
violência? Não, de maneira nenhuma. Os adolescentes que estão à frente das
cadeias, as lideranças, em princípio, tem que ter disposição para dialogar e
resolver as coisas na ideia. Porém, se em determinado momento ele tiver que
matar, ele tem que executar isso da melhor maneira possível. É uma combinação
entre a predisposição ao diálogo, mas, ao mesmo tempo, sem perder de vista que
tem que ter disposição para agir se for necessário.
Laura
Capriglione — Quais os outros requisitos para ser uma liderança?
Fábio
Mallart — Existem alguns, entre os quais uma
performática da inteligência. Na época em que eu frequentei mais as cadeias, os pilotos usavam óculos, como atributo de um cara inteligente.
Não é só ter uma predisposição ao diálogo, mas é mostrar isso no corpo, também.
Se possível, usar uns óculos, nunca falar num tom de voz alto, ou gritar no
pátio, sempre andar com extrema discrição. São adolescentes que não são muito
vistos. Que tem uma postura corporal mais introspectiva.
Laura
Capriglione — Não pode rir?
Fábio Mallart — É interessante, porque como eu dava aula de fotografia, a gente tirava muitos retratos… Mas os alunos dessas oficinas não riam porque o riso estampado na imagem era uma prova de fraqueza perante os funcionários. Então, eles evitavam o sorriso e diziam: “Pô, senhor, se a gente ficar rindo, os funcionários vão achar que a gente tem fraqueza na cadeia”, entendeu?
Fábio Mallart — É interessante, porque como eu dava aula de fotografia, a gente tirava muitos retratos… Mas os alunos dessas oficinas não riam porque o riso estampado na imagem era uma prova de fraqueza perante os funcionários. Então, eles evitavam o sorriso e diziam: “Pô, senhor, se a gente ficar rindo, os funcionários vão achar que a gente tem fraqueza na cadeia”, entendeu?
Laura
Capriglione — E como acontece a prática dos debates entre os internos?
Fábio
Mallart — Tenho relatos, que inclusive coloquei
no livro, sobre horas e horas de debates para apurar se
“um cara fez alguma fita errada”; é um processo com ampla possibilidade de
defesa pelo acusado, até que se chegue a um consenso de que aquilo realmente
foi feito por ele ou não. Há uma predisposição a esse tipo de diálogo. Nas
periferias o que a gente tem visto é a replicação dessa prática dos debates. O
resultado é que não se mata mais como antigamente; é preciso uma autorização,
entrar em um consenso com vários irmãos para ver se mata ou se não mata. Acho
que essa predisposição ao diálogo é hoje uma coisa do universo do crime mesmo,
não só da Fundação Casa.
Laura
Capriglione — Isso contraria o senso comum, para o qual o crime e o governo são
antagônicos. Não necessariamente, não é? Às vezes, parecem operar de forma complementar…
Fábio
Mallart — É isso o que eu estou dizendo. Muitas
vezes essas políticas do crime e as políticas governamentais operam de modo
complementar. Não são necessariamente antagônicas. O encarceramento em massa,
por exemplo. O governo do Estado coloca um monte
de gente dentro das unidades prisionais, pensando que assim reduzirá os índices
do crime aqui fora, mas, na verdade, está fortalecendo o PCC nas cadeias. Um
preso pode ficar muitos anos lá dentro, sujeito à disciplina do PCC. Mas sairá
em algum momento. Como sairá? Outro dado interessante é a queda das taxas de
homicídio nos últimos anos… O governo não cansa de se vangloriar de que o
Estado de São Paulo reduziu as taxas de homicídio. Mas isso em certa medida
está relacionado à prática dos debates, também na periferia. Não poder mais
matar como se matava anteriormente. É curioso, porque obviamente o governo não
vai reconhecer e dizer “olha, a queda dos homicídios está relacionada a uma
política do crime”. Mas, com certeza, a prática dos debates e de arbitrar sobre
a vida e a morte nas periferias, com certeza é muito funcional para o Estado
também. Porque caem os homicídios, e o Estado diz “olha só os resultados das
nossas boas políticas de combate ao crime”. Tem vários casos que apontam para
isso, como é funcional para os dois lados. Tanto para o lado do PCC, porque o
encarceramento o fortalece, quanto para o lado do Estado, já que as políticas
do Comando, sobretudo nas periferias, ajudam a reduzir a taxa dos homicídios, e
aí o governo usa isso em prol de si mesmo.
Laura
Capriglione — Na época daquelas rebeliões enormes que houve na Febem, diziam que a
saída era criar pequenas unidades, com menos jovens, sobre as quais o Estado
pudesse ter um controle maior. Concretamente, como é que isso aconteceu?
Fábio
Mallart — Eu trabalhei
nos grandes complexos e eles às vezes tinham 1.500, 1.600 adolescentes. E não
eram 1.500, 1.600 adolescentes separados e divididos –sem comunicação. Eram
1.500, 1.600 adolescentes que se comunicavam através dos pilotos, das lideranças,
que subiam pelos telhados e tinham toda uma relação. Sem dúvida nenhuma,
unidades menores são unidades mais fáceis de serem controladas. No Complexo
Raposo Tavares, houve uma época em que a unidade de internação 37 era uma
unidade super-reconhecida pelos adolescentes, porque era a dos reincidentes
graves. Pois bem, eles tinham total controle da unidade, estavam em sintonia
com a periferia e com os presídios também. Era uma unidade que, do ponto de
vista da instituição, dava uma série de problemas. Certa vez, quando visitava
essa unidade, para dar um curso, vi que os adolescentes haviam construído uma
piscina dentro de uma sala. Tinham arrancado a porta e construído uma piscina.
E quando eu entrava lá, eles diziam: “Pô, senhor, aqui só não entra moto e
carro porque não passa na gaiola. O resto… tem tudo aqui dentro”.
Laura
Capriglione — E o Estado conseguiu retomar o controle desse unidade 37?
Fábio
Mallart — Sim e não. No começo de 2008, a unidade
resolveu pegar todos esses adolescentes e os enviou para outras unidades do estado. Reformaram a unidade e trouxeram uma
população nova. Pois bem, depois de alguns meses foram chegando –pouco a pouco–
adolescentes do Complexo Brás, para cumprirem a medida socioeducativa ali.
Quando eles chegaram era um controle absurdo. Eram 10 adolescentes para mais de
15 funcionários, mão para trás, cabeça baixa. Era uma cadeia que naquele
momento, depois da reforma, era classificada como uma cadeia na mão dos
“funça”. Só que, com o passar do tempo, quando foram chegando mais
adolescentes, mais adolescentes, mais adolescentes, eu fui percebendo que essa
ordem disciplinar punitiva foi trincando. Então os adolescentes foram tentando,
por meio das famílias, acessar defensores de direitos humanos, as organizações
não governamentais começaram a reclamar do tratamento que era dado aos
adolescentes, que vira e mexe tinham marcas de espancamento. Os adolescentes
começaram a acessar os integrantes do PCC fora das unidades. Em algumas
situações, quando eles sabiam que algum integrante da Veij (Vara Especial para
Infância e Juventude) ia fazer uma inspeção na unidade, eles marcavam os
próprios corpos, para que a Veij concluísse que eles estavam sendo espancados.
Eu pude perceber uma serie de disputas para conseguir retomar o controle da
cadeia. E num determinado momento, quando eu saí da unidade, ela já não era
mais uma cadeia na mão dos “funça”, ela já estava sendo classificada como uma
cadeia meio-a-meio. Os adolescentes falavam para mim: “Senhor, falta pouco.
Logo mais a cadeia vai estar na nossa mão”. Acho que o exemplo dessa unidade
mostra como essas figurações de poder (dominadas, na mão dos “funça” e
meio-a-meio) não são estáticas. São figurações mutáveis, são produtos do
próprio jogo que se trava dentro dos espaços institucionais.
Laura
Capriglione — Num certo sentido, você não acha que o que a gente tem implantado nas
cadeias já é uma antecipação de fato da maioridade penal?
Fábio
Mallart — A discussão da redução da maioridade
penal é uma discussão sempre feita de maneira muito grotesca. Em geral, em momentos de comoção popular, quando um adolescente
mata alguém de classe média ou alta, aí a gente tem uma discussão sobre isso.
Mas a verdade é que, aos poucos, fui me dando conta que, quando você tem
unidades de internação que são chamadas de “cadeias”, tanto pelos agentes
institucionais quanto pelos adolescentes; quando você tem uma série de
funcionários do sistema prisional que assumem a direção dessas unidades; quando
você tem uma unidade que opera a partir da imitação do RDD (Regime Disciplinar
Diferenciado), que é do sistema prisional; quando você tem transferências de
adolescentes de unidades de internação para unidades prisionais do interior
paulista, eu acho que todas essas medidas já vão apontando para uma coisa que é
muito mais perversa, que é a redução informal da maioridade penal.
Laura
Capriglione — Informal?
Fábio
Mallart — Sim, e uma
tal informalidade é extremamente perversa. Enquanto as pessoas estão discutindo
se no plano legal vai ou não haver a redução da maioridade penal, na prática
algumas das unidades de internação hoje em dia já operam a partir da lógica
prisional.
Laura
Capriglione — Qual é a posição dos juízes? Eu queria que você falasse sobre essa
peculiaridade das varas especiais de infância e juventude… Como elas lidam com o jovem infrator?
Fábio
Mallart — Na minha
pesquisa, eu não trabalhei com as varas especiais da infância e juventude, mas
conversando com adolescentes e com funcionários da instituição, e pesquisando
na literatura, percebe-se claramente a presença da mentalidade encarceradora
nessas varas especiais da infância e juventude. E acho que nem poderia ser
diferente, já que, conforme conversamos, há uma simetria entre o sistema
prisional e o sistema socioeducativo.
Laura
Capriglione — Quem são esses internos da
Fundação Casa? Que tipo de ato infracional eles cometeram?
Fábio
Mallart — A quantidade
de pequenos traficantes que são colocados dentro dos espaços de internação e
dentro das prisões hoje em dia é um ponto a ser considerado. Eu me deparei com adolescentes
que tinham sido presos por estarem com 15g de cocaína, com uma pequena
quantidade de maconha; por estarem perto da biqueira; por terem alguma relação
com quem trabalhava na biqueira. Esse cenário também diz muito sobre o modus
operandi da polícia, do tipo de suspeito que já é julgado e condenado na hora
da abordagem policial.
Laura
Capriglione — Então estamos falando de pequenos usuários, pequenos ladrões… é tudo
crime de pé-de-chinelo?
Fábio
Mallart — Isso não significa que não possa haver
adolescentes que sejam chefes de quadrilha, adolescentes de 16 anos que tenham
18 assaltos na ficha. Uma das trajetórias que reconstituí, o “Túlio”, tem esse
perfil. Ao ser preso, ele tinha mais de 16 assaltos, chefiava quadrilha, saiu nos jornais da cidade dele. Então, não é que sejam
apenas pequenos ladrões ou pequenos traficantes… Mas, certamente, na esmagadora
maioria dos casos, os jovens infratores são pequenos traficantes, pessoas pegas
com pequenas quantidades de droga, ou por furto, enfim, coisas desse tipo.
Laura
Capriglione — E esses pés-de-chinelo vão aprender um monte de coisa com os “Túlios” da
vida. Tem essa ideia da cadeia como escola do crime. Também funciona na
Fundação Casa, não é?
Fábio
Mallart — Eu sempre fico
um pouco com o pé atrás com essas formulações, sabe, tipo “a cadeia é a escola
do crime”. Acho que tudo que envolve o crime está cheio desses chavões que
tentam explicar, geralmente numa perspectiva muito causal. Agora, o que eu pude
perceber é que muitos adolescentes entravam nas unidades já sabendo o modo de
operação do Primeiro Comando da Capital. Isso significa que os adolescentes são
integrantes do PCC? Jornais falam há pelo menos uma década de uma “facção
mirim”, de que o PCC está dentro das unidades, de que os adolescentes são
integrantes do PCC. Eu responderia isso de duas formas. Depende do ponto de
vista. Se você levar em consideração que, para ser integrante da facção, você
precisa passar por um processo de batismo para se tornar “irmão”, não, a
maioria deles não são integrantes do PCC. Agora, se você levar em consideração
que esses adolescentes orientam as suas ações pelas palavras e fecham com o
PCC, que correm lado a lado, aí sim, eles podem ser vistos como integrantes,
mesmo sem serem irmãos.
Laura
Capriglione — O que você acha da privatização das unidades da Fundação Casa?
Fábio
Mallart — Fico
preocupado, porque a gente está lidando com vidas. Até que ponto essas vidas
serão afetadas por interesses comerciais, caso haja a privatização? Até que
ponto uma ou outra atitude da empresa que estiver fazendo a gestão daquele
espaço não estará sendo guiada por questões econômicas, de eficácia e de
produtividade? A alimentação na maioria das cadeias já é terceirizada (e aliás
o serviço era péssimo). Mas privatizar a gestão e, consequentemente, vidas
humanas, eu acho que é algo que deve ser no mínimo pensado e repensado com
bastante cautela.
Laura
Capriglione — Mas é preciso fazer alguma coisa…
Fábio
Mallart — Sempre na questão das políticas públicas, tem um espaço de reflexão que é quase que pulado. “Vamos fazer
algo”, “vamos fazer uma intervenção”, “vamos fazer uma mudança”, mas isso tem
efeitos. É preciso pensar nesses efeitos. Por exemplo, em 2006, uma das coisas
que a fundação fez foi pegar as lideranças de todos os grandes complexos e
colocar na Vila Maria, nessa unidade que depois ficou sob o RDD. Pegou todas
essas lideranças numa tentativa de anulá-las e pôs na Vila Maria. Só que,
quando fez isso, o espaço da Vila Maria virou uma referência para todas as
outras unidades do estado.
Laura
Capriglione — Como?
Fábio
Mallart — Lá havia o que os adolescentes chamavam
de ladrões estruturados, que podiam dar uma opinião, tinham uma palavra, como
eles diziam, mais forte, uma experiência, uma caminhada… Os adolescentes de outras unidades sempre tentavam ter uma relação
com os adolescentes que estavam presos naquela unidade. Além disso, os
adolescentes que foram para a Vila Maria podiam ficar ali por 30 dias. Então
eles ficavam 30 dias e depois voltavam para suas unidades de origem.
Entrevistei um rapaz, “Pedro”, que me disse exatamente isso: “Pô, senhor, eu
voltei com uma visão maior, sabe? Voltei um cara mais estruturado”. Tinha
convivido com um cara que tinha dez passagens. Ao voltar para sua unidade,
voltou com muito mais status do que quando saiu.
Laura
Capriglione — Em que as unidades atuais são diferentes das antigas?
Fábio Mallart — As “cadeias dominadas” possibilitam um
outro jeito de estar no mundo, diferente daquele dos adolescentes que estavam
naquela década de 70 e 80. Só que tem uma perversidade… e acho que a trajetória
do “Pedro” mostra isso claramente. Quando o reencontrei pela última vez, ele me
disse uma frase: “Senhor, eu sinto saudades daquela época”. E eu fiquei
pensando: “Afinal de contas, por que ele sente saudade de uma época em que
chegou a ser espancado, em que estava preso?” É evidente o porquê. Quando ele
saiu da instituição, se deparou com os mesmos problemas familiares que tinha, o
grupo de amigos dele, a maioria tinha sido morta, a outra parte tinha sido
presa. Depois de muito tentar, ele conseguiu emprego como empacotador de soja,
em uma empresa que só contratava egressos do sistema prisional adulto. Foi aí
que ele conseguiu se encaixar. Ganhava um salário irrisório. Ele se deparou com
uma situação muito diferente da que vivia quando estava internado na unidade de
internação. O “Pedro” era piloto, tinha uma posição de prestígio e poder; ele
negociava com diretor, ele era ouvido tanto por adolescentes quanto por
funcionários. Ao sair, o que encontrou foi totalmente o avesso dessa posição.
Daí, acho que vem a explicação de ele sentir falta da época da internação. No
final das contas, o reconhecimento social que ele tinha dentro evaporou-se no
ambiente externo à Fundação Casa. Tem uma perversidade nesse jogo também.
“Pedro”, quando foi desinternado, foi carregado no colo por 150 adolescentes,
que o chamavam de “cara firmeza”, todo mundo agradecendo os serviços prestados.
Fora da “cadeia”, ele nunca teve reconhecimento nenhum.
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